Há uns dias, enquanto viajava em trabalho entre Porto e Lisboa, fui “provocada” pelo meu colega de viagem com a seguinte questão: “Há algo que não consigo perceber. Como te podes sentir tão orgulhosa por teres começado a tua carreira num call center?...” Ele nem precisou de terminar, porque começaram imediatamente a formar-se na minha mente as frases que ele não ousara pronunciar. “Um call center, aquele espaço repleto de gente em condições precárias, sem qualificações nem grandes objectivos”. “Um call center, aquele antro, onde as pessoas são exploradas e tratadas como números”. “Como é possível isto ser motivo de orgulho para alguém?”.
Apesar de ter respondido rapidamente com algo que me pareceu correto e educado, mas de que já nem me recordo, a verdade é que fiquei perplexa com aquele comentário. Porque não seria óbvio para ele o orgulho que sinto pelo que aprendi com o meu primeiro emprego à séria (sim, porque desconto desta história os meus primeiros empregos durante as épocas de férias)? Ainda hoje, muitos dos meus valores e das minhas atitudes estão intrinsecamente ligados ao que vivi no call center. Porque será que tanto valorizo esta experiência, e há alguém que não entende porquê?
Com 19 anos, após a conclusão de um Curso Geral de Humanidades na Escola Secundária da Póvoa de Santo Adrião e uma entrada desastrosa na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, num curso que odiei desde a primeira aula, eu não sabia fazer nada. Era tímida, boa aluna, mas tudo o que sabia era estudar e divertir-me com os meus amigos. Não tinha futuro porque “tinha jeito para tudo”, segundo a psicóloga a quem pedi apoio na escola, mas não sabia o que queria fazer. Sabia que não queria mais voltar às aulas na Faculdade, mas também sabia que não queria (nem podia, que os tempos eram outros) ficar em casa, sem qualquer ocupação. E saber o que não queria foi o princípio da decisão!
Uma amiga falou-me de uma oportunidade no local onde trabalhava e, recorrendo à tecnologia que tinha ao meu dispor em 1999, desloquei-me à receção desse mesmo local e entreguei o meu currículo em papel ao funcionário que me recebeu.
Alguns dias mais tarde, chegou a tão ansiada chamada telefónica. Do outro lado da linha, alguém me confirmou o que mais esperava: “Tem disponibilidade para vir a uma entrevista?”
O resto da história é previsível, nesta fase, mas não o era para mim na altura, porque a verdade é que não fazia ideia do que me esperava. Fui selecionada (eu, que não sabia fazer nada a não ser estudar e divertir-me com os meus amigos!) e, dias depois, iniciei a minha formação para assistente de call center. Neste exercício de instrospeção provocado pelo comentário do meu colega, este é o momento que quero registar como primeiro motivo para, ainda hoje, considerar a indústria dos call centers uma excelente porta de entrada no mundo do trabalho. Eu não sabia fazer nada. Era muito introvertida e, apesar da minha dificuldade em expressar-me, das tolices que devo ter dito na entrevista e da minha notória falta de experiência profissional, um técnico de recrutamento decidiu dar o seu “sim” à minha contratação e uma empresa decidiu apostar na minha formação. E pagar-me por isso.
Estive um mês em formação inicial e, desde o primeiro dia, que formadores, supervisores e colegas mais seniores se empenharam diariamente em tornar-me menos desajeitada com a comunicação e mais profissional no trato com clientes. Aprendi o que era coaching e a vantagem de termos alguém que acompanha o nosso desenvolvimento, nos orienta e nos lidera. Aprendi a estruturar o meu discurso e a saber o que dizer em tantas outras entrevistas futuras. Mais tarde, também aprendi que isto de contribuir para a formação de alguém não é só uma obrigação do líder, mas missão de todos os elementos de uma equipa, de uma empresa. No call center, a formação e integração dos elementos mais recentes é responsabilidade de todos. E também chegou a minha vez de contribuir, assim que me senti mais confiante nas minhas funções.
O que tive de dar em troca? Apenas a minha sede de aprender e o meu empenho em melhorar diariamente.
Poucas são as indústrias que apostam tanto na formação dos seus colaboradores. Aqui, não só tive uma formação inicial de trinta dias, como formação contínua ao longo de todas as semanas dos quatro anos em que estive a desempenhar as funções de assistente de call center. Uma formação que nos prepara para sermos experts no produto e nos serviços sobre os quais estamos a prestar apoio, mas também que nos ajuda a aprimorar a obsessão com o cliente.
E é assim que parto para o segundo item da minha lista. A paixão pelo serviço ao cliente. Embora parecendo um lugar-comum, a verdade é que esta paixão pelo serviço ao cliente é um dos valores que transporto comigo, em todas as atividades que tenho desenvolvido ao longo dos anos. A vontade de fazer mais, surpreender, mimar o cliente, até o deixar sem argumentos para não se apaixonar também por nós. E isto foi algo que o call center me ensinou. Nós temos o poder, às vezes apenas com as nossas palavras, como no caso do atendimento telefónico e em tantas situações em que a solução não depende de nós, de transformar uma simples interação num passo para o cliente recomendar os nossos serviços. Nós temos esse poder. Eu tinha esse poder, apenas com 19 anos! E o que abusei e tenho abusado dele! Porque encantar um cliente, não só poderá traduzir-se num enorme benefício para a empresa que representamos, como é fonte de imensa satisfação pessoal.
Foi também no call center que isto da satisfação pessoal se transformou em algo sério, porque aprendi o que eram objetivos, o que eram objetivos que dependiam de mim e objetivos que dependiam de um trabalho contínuo e resiliente de equipa. Sim, e este é o terceiro ponto da minha lista de motivos de orgulho. O trabalho em equipa. Este é um dos requisitos para se ser um profissional de call center – gostar de trabalhar em equipa. Vê-se em quase todos os anúncios de emprego para estas funções, mas a verdade é que, com 19 anos, eu sabia lá se gostava de trabalhar em equipa. Eu gostava dos trabalhos de grupo que nos eram pedidos na escola, mas regra geral estes acabavam sempre com um elemento do grupo a acabar o trabalho, porque todas as reuniões tinham sido aproveitadas para efeitos mais lúdicos. No call center, trabalhar em equipa é como o ar que respiramos. Cada um de nós tinha os seus objetivos, mas a verdade é que os resultados individuais de pouco valiam se a equipa não chegasse ao sucesso, graças ao esforço de todos. As derrotas, a frustração, mas também as celebrações e os abraços de contentamento sempre fizeram parte da rotina daquele call center. Como atualmente ainda faz de tantos outros. Os prémios, as fotos, os lanches partilhados, a intensidade de um dia a dia em que a superação é o mote. Mas também a estratégia para juntos chegarmos mais longe, as palavras de incentivo dos líderes e o apoio nas situações mais difíceis. Tudo isto são lições para a minha vida pessoal, mas também profissional. É preciso sermos mais uns dos outros e uns para os outros. Porque não há incentivo maior para a vitória que podermos celebrá-la em equipa, sabendo que todos a mereceram. E isto, foi o call center que me ensinou.
Após um período de três anos enquanto assistente de call center, também foi aqui que aprendi o que é isto da progressão na carreira, de que tanto se fala atualmente, como sendo um dos aspectos que as empresas devem desenvolver para reter as gerações mais novas. Fui supervisora, formadora, técnica de qualidade, coordenadora, gestora de projeto. Em áreas diferentes, com pessoas diferentes. Sempre apoiada por uma equipa, fosse em que serviço ou atividade, que me deixou errar e avançar. Adquiri competências de comunicação e deixei de ser a desajeitada e tímida miúda de 19 anos, aprendi a usar a criatividade e a flexibilidade para encontrar soluções e respostas, apenas pelo prazer de poder a cada contacto fidelizar mais um cliente. Recebi formação de liderança e tive o privilégio de liderar equipas de grandes profissionais de call center, todos tão diferentes - novos, velhos, portugueses, estrangeiros, mulheres, homens, mais ou menos motivados - mas todos tão inspiradores, com quem tanto aprendi e cresci. Quatro anos depois, acabei por voltar à Faculdade e concluir um curso para o qual me sentia, finalmente, vocacionada. Mais forte e mais competente, do que quatro anos mais cedo. Graças à oportunidade que o call center me deu, apesar da parca experiência profissional que o meu currículo e a minha prestação na entrevista revelavam.
Caro colega, caso venhas a ler este artigo, agradeço-te a questão daquele final de tarde. Porque sim, houve momentos em que pensei desistir, momentos de intenso trabalho, com chamadas permanentemente em espera, sem espaço para pausas ou descanso. Como tenho ainda hoje, numa função muito diferente. Sim, apenas tinha a minha vontade de ser desafiada e a minha curiosidade, mas não tinha grande coisa para oferecer para além da minha atitude. E isso bastou para função à qual me candidatei. Graças à minha passagem por esta indústria, tornei-me uma profissional mais capaz, com uma atenção constante ao serviço que presto aos meus clientes, que tenta superar-se a cada obstáculo, viciada em objetivos e muito dedicada a todas as equipas com quem trabalho. Numa altura em que não tinha um plano de ação definido para a minha vida nem recursos para conseguir desenhá-lo, o call center desenhou-o comigo. Porque decidi retirar desta experiência o melhor que ela me dava em cada um das suas fases.
Se em todo os call centers há histórias que não são assim tão felizes? Claro que sim. Se há profissionais que não se revêem nesta indústria? Absolutamente. Se há práticas menos boas neste sector? Também sei que sim. Como em qualquer outro ramo de atividade, infelizmente. A minha e a de tantas outras centenas pessoas com quem me cruzei, ao longo de vinte anos, no entanto, é uma história muito Feliz, repleta de aprendizagem e desafios. Obrigada por me fazeres recordar tudo isto. Espero ter sido mais clara na minha resposta, desta vez, e que já percebas um pouco melhor o porquê do meu orgulho nesta passagem pelo call center.